Não foi exatamente no baile. Foi no Senac.
Trabalhei durante quase dois anos como professor do Projeto Aprendiz Cidadão no Senac.
Deixei alguns amigos por lá, pessoas que são muito caras pra mim. Por isso, de vez em quando passava por lá pra tomar um café na cantina e rever os amigos.
Fiz isso hoje. Mas fui barrado quando ia passando pela portaria. Eu disse ao rapaz que ia à cantina e ele me disse que a cantina era só para alunos.
Eu expliquei que era ex-professor do Senac. Mesmo assim, ele disse que eu não poderia entrar.
Não tive escolha a não ser dar meia volta e sair de lá resignado, com uma angústia apertando no peito. A sensação era de que o ar não chegava plenamente aos pulmões.
Como pode você dedicar tanto o seu tempo e talento a uma instituição e depois você simplesmente ser barrado nesse lugar? Proibido de entrar como se fosse uma persona non grata, como se a história que você construiu ali não tivesse nenhum valor.
Eu começei a me desencantar com o Senac pouco tempo depois que entrei pra trabalhar lá. Quando começei a dar aula à garotada do projeto, percebi que havia algumas coisas estranhas.
O Aprendiz Cidadão é um projeto do governo estadual, sob a coordenação da Secretaria Estadual do Trabalho, Habitação e Assistência Social (Sethas), em parceria com o Senac.
O programa é feito para jovens e adolescentes entre 15 e 17 anos, estudantes da rede estadual de ensino, que vivem em situação de vulnerabilidade social.
A garotada é treinada durante um ano em algum curso profissionalizante. As aulas são em dois dias da semana, sempre em horário inverso ao horário escolar. Depois de um certo tempo, os alunos são encaminhados pra estágio nas empresas da cidade.
Eles continuam tendo aulas no Senac e no restante da semana vão para o estágio. De acordo coma Lei do Aprendiz do Governo Federal, eles têm direito a carteira assinada, salário mensal de meio salário mínimo e todos os direitos trabalhistas, como vale-transporte, 13º salário, férias e FGTS.
Na prática, muitos desses direitos são ignorados. Nunca soube de nenhum estagiário que teve direito a férias. A fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) é muito falha.
Além disso, muitos alunos são contratados para o cargo de assistente administrativo, por exemplo, mas são obrigados a realizar funções que não têm nada a ver com a profissão. Muitos são submetidos a um regime de exploração do trabalho.
Os próprios alunos sempre relataram esses casos aos professores do projeto, às assistentes sociais e à direção pedagógica do Senac.
Mas o problema não estava só nas empresas. Havia falhas já no momento da seleção dos alunos para o projeto. Muitos não se enquadravam no princípio de vulnerabilidade social. A gente ficava sabendo de aluno que o pai ia deixar e pegar de carro novo lá no curso.
Quando a gente ia atrás, ficava sabendo que aquele aluno era parente de alguém do Senac ou do governo.
Enquanto isso, vi muitos meninos e meninas realmente carentes irem lá pedir uma vaga pra entrar no projeto e ouvir um não como resposta.
Mas não era só isso. O Senac discriminava os alunos do Aprendiz Cidadão. Eles mentiam para os alunos, dizendo que era o próprio Senac que custeava todo o projeto, quando, na verdade, tudo era bancado pelo governo estadual.
O governo pagava mais caro por cada aluno do projeto do que o Senac recebia dos alunos particulares dos outros cursos.
Mas o Senac queria que os alunos acreditassem que eles estavam ali por causa da caridade da instituição. Então, eles discriminavam os alunos. Aluno do Projeto Aprendiz Cidadão não podia usar o elevador nem as escadas principais do prédio; somente as escadas dos fundos, pra não incomodar os alunos ricos, que pagavam os cursos do próprio bolso.
O Senac excluia o excluído. Os alunos do projeto eram tratados com uma visão marginalizadora, criminalizadora.
Eu tentei quebrar com isso. Ousei questionar coisas. Não aceitei esse absurdo calado. Por isso, passei a ser visto e tratado como uma pessoa que era "contra tudo". Certa vez, eu disse que o material didático utilizado nos cursos era obsoleto e ouvi como resposta de outro professor que eu não era pedagogo e, portanto, não poderia dar pitaco sobre isso.
Tempos depois, uma comissão de pedagogas analisou as apostilas e mandou jogar tudo no lixo, porque o material continha erros grosseiros e estava muito desatualizado.
Paguei um preço alto por minha "rebeldia". Fui acusado de tudo. Toda hora ouvia uma história diferente. As pessoas chegavam pra mim e diziam assim: "Alisson, disseram que você disse/fez isso e aquilo outro".
De alguns boatos só fiquei sabendo quando saí de lá. Falaram que eu dava em cima das alunas e dos alunos; que eu discriminava os alunos que moravam na Zona Norte da cidade; que eu tinha chamado aluno de "veado"; entre outras coisas.
Houve uma história que me fez chorar de raiva. Eu tinha combinado com meus alunos de fazermos uma poupança pra festa de formatura. Ficou acertado que cada aluno contribuiria mensalmente com R$ 2,00. As turmas elegeram seus respectivos tesoureiros, que iriam receber e guardar o dinheiro até chegar a hora da nossa festa. Esse dinheiro nunca passou pela minha mão. Eu nem sabia quem tava pagando ou não.
Mas após a minha saída, disseram que eu estava recebendo dinheiro dos alunos e que eu havia prometido a eles que faria uma festa numa casa de praia com bebidas, drogas e sexo liberados.
Foi fácil pra eles arranjarem uma desculpa pra me demitir. Entrei em depressão depois disso e passei muito tempo recluso, desiludido com a vida.
Mas procurei guardar comigo o sorriso dos meus alunos e as lágrimas quando da nossa despedida. Muitos deles chegaram pra mim e disseram: "Professor, você mudou a minha vida". Não poderia receber recompensa melhor.
Eu tentava falar a língua deles, dava atenção aos problemas e aos dilemas pessoais. Nunca me coloquei com alguém que estava ali pra dizer pra eles o que era certou ou errado. Isso eles teriam que descobrir sozinhos, olhando, observando, analisando, decidindo o que eles queriam e esperavam para o futuro. Eu só tentava fazê-los pensar, fazê-los enxergar que eles deveriam ser cidadãos críticos, pra não serem manipulados por ninguém - nem por mim.
Eu me "misturava" com eles até na hora do intervalo. Queria saber o que se passava com a vida de cada um, quais as dificuldades que eles enfrentavam. Virei professor, pai, psicólogo e amigo. Para alguns, fui tirano. Não consegui vencer as barreiras de todos, o que me deixou um pouco frustrado também. Fiquei decepcionado com alguns a quem estendi a mão. Mas a vida é desse jeito mesmo.
A minha aproximação e o meu jeito de lidar com os alunos não eram bem vistos por todos os profissionais do projeto. Fui aconselhado diversas vezes a ser "mais profissional" e limitar-me apenas a dar aula, sem me envolver com os problemas dos alunos. Essas mesmas pessoas que me aconselhavam a ser "mais profissional" diziam que só queriam saber do dinheiro no final do mês e que não estavam nem aí pra problema de aluno.
Hoje, depois de ter sido barrado, tudo isso veio à memória. Não tô escrevendo por rancor, mas como um desabafo mesmo. Escrevo para expressar a revolta típica dos indignados, que é como me sinto hoje.
E mesmo que todas essas lembranças ainda me façam sofrer, sinto que valeu à pena. "Tudo vale à pena se a alma não é pequena", já dizia o poeta.
Um comentário:
O professor Alisson mudou minha vida.
Vendo esse post me deparei com a certeza de muitas dúvidas que me passaram pela cabeça quando saí do Senac, eu sentia essa "guerra fria" em quase todas as aulas que tive da metade do curso até o seu fim, ouvi também, coisas que um "profissional" nunca poderia ter dito a mim, e olha que isso foi uma das coisas que me ensinaram no curso, nenhum funcionário pode falar (e até inventar) coisas ruins sobre outro funcionários para seus clientes. O mais intrigante é que ninguém sabia exatamente o que acontecia, mas mesmo assim ninguém foi buscar qualquer resposta, até porque o andar que ficava as salas de direção, professores e coordenação era restrita, e nenhum aluno do Projeto Aprendiz Cidadão poderia passar por lá.
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