Excelente o artigo de Elio Gaspari na
Folha de São Paulo deste domingo. É sobre o voto do ministro Carlos Ayres Britto do Supremo Tribunal Federal a favor do ProUni, programa do governo federal que dá bolsas de estudos para alunos carentes entrarem na universidade. O programa adota critérios de renda e de raça para o acesso ao ensino superior.
O DEM havia entrado com uma ação no STF questionando a legalidade do ProUni. O DEM é contra o programa porque não quer que pobre entre na universidade. É simples assim.
Invoca-se o discurso do mérito e outras falácias como a negação do preconceito no Brasil e o argumento segundo o qual as políticas afirmativas exacerbariam uma divisão racial que na verdade não existe, baseando-se no sofisma de que somos todos integrantes de uma única raça, a saber a raça humana.
Esse assunto também foi debatido no programa "Altas Horas", apresentado pelo Serginho Groisman na Globo, na madrugada de sábado para domingo. Duas garotas, com opiniões opostas, participaram do quadro "Contra ou A Favor", que no programa de ontem tratava da questão das cotas.
Eu peguei o debate do meio pro final. Mas deu pra perceber como os argumentos de quem é contra as cotas e outras políticas afirmativas repetem sempre os mesmos clichês. A garota do contra invocou a premissa da raça única - a raça humana. A garota a favor disse que a discussão não era sobre o conceito biológico de raça, mas sim o conceito social, a forma como esse conceito foi trabalhado e usado para excluir durante séculos negros e índios, desembocando numa sociedade cujas estruturas são a injustiça e a desiguldade históricas.
A jovem contrária às cotas, que é negra e usava uma camiseta do "Movimento Negro Socialista", disse ainda que as políticas afirmativas contrariam o princípio da igualdade de todos perante a lei, conforme rege a Constituição do Brasil. A outra jovem contrapôs-se a ela afirmando que, embora esteja assegurada em lei, a igualdade de fato não existe e, para que ela deixe de ser apenas um conceito ou letra morta, são necessárias ações que garantam a sua efetivação e que amenizem as desigualdades históricas contra os negros.
É isso aí. Agora, fiquem com o artigo de Elio Gaspari:
Um grande voto no julgamento do ProUni BENDITA A HORA em que o DEM (ex-PFL) e a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino resolveram bater às portas do Supremo Tribunal Federal, sustentando a inconstitucionalidade dos atos que criaram o ProUni. Levaram para a Corte a discussão da legalidade de ações afirmativas baseadas em critérios de renda e de raça para o acesso ao ensino superior. Na semana passada, tomaram a primeira pancada, pelo voto do ministro-relator Carlos Ayres Britto.O ProUni troca por bolsas de estudo as imunidades tributárias dadas às universidades particulares. Coisa como 10% das vagas disponíveis. O programa já atendeu 310 mil jovens oriundos da rede pública e neste ano formará a sua primeira turma, com 60 mil bolsistas. Há 100 mil estudantes pré-selecionados para a próxima rodada de matrículas. Para receber uma bolsa integral, a renda per capita familiar do candidato não pode ser superior a 1,5 salário mínimo. Por exemplo, um casal com dois filhos não pode ganhar mais de R$ 1.648. As vagas do ProUni também devem ser preenchidas favorecendo o acesso de candidatos afro-descendentes (quem não gosta da expressão pode chamá-los de "descendentes de escravos"). A concessão de bolsas deve acompanhar os percentuais de diversidade de cada Estado, conforme o censo do IBGE. Há um regime de bolsas parciais, que segue critérios semelhantes.Segundo a Confenen e o DEM, esses critérios são inconstitucionais porque violam o princípio da igualdade entre os cidadãos. (Eles faziam outras restrições, também rejeitadas pelo relator.)Britto julgou improcedente o pedido, argumentando em cima do nervo da questão: o que é a igualdade numa situação de desigualdade? Nas suas palavras: "Não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. (...) É como dizer: a lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor outra desigualação compensatória".Em vez de tentar derrubar quem está em cima, empurra-se quem está em baixo. Tome-se o caso de dois jovens reprovados nos rigorosos vestibulares das universidades públicas, gratuitas. Um, de família mais abonada, vai para uma faculdade particular, paga. O outro iria à lona, mas, com o ProUni, vai à aula.Britto buscou uma parte de sua argumentação na Oração aos Moços, de Rui Barbosa: "A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. (...) Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real".O voto de Britto trata só do Pro-Uni. Sua linha de raciocínio abre um guarda-chuva conceitual que antevê próximos julgamentos, quando o STF será chamado a decidir sobre a constitucionalidade do regime de cotas em inúmeras universidades públicas. Terminada a leitura, na quarta-feira, o processo do ProUni foi suspenso por um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa e recomeçará em poucas semanas. Se o DEM e a Confenen não tivessem cutucado as togas com vara curta, essa bonita discussão não teria sido aberta.