quarta-feira, 19 de março de 2008

Colômbia a caminho da ditadura

Líder da oposição acusa Uribe de repetir "fracasso dos EUA"

Em reportagem especial para a "Terra Magazine" direto de Bogotá, Camila Moraes mostra que nem todos na Colômbia compraram o peixe do presidente Álvaro Uribe e que há visões díspares sobre a conseqüência da crise no continente deflagrada após a invasão de território equatoriano pelo Exército colombiano, em 1º de março, que culminou com a morte do guerrilheiro Raúl Reys, considerado o número 2 das Farc.

Camila destaca que o principal jornal colombiano, "El tiempo", publicou ontem (terça-feira, 18), uma reportagem afirmando que "a OEA conseguiu um consenso para superar a crise diplomática". Mas ela registra que há divergências sobre a questão.

Ainda segundo a jornalista, o presidente Álvaro Uribe e o chanceler Fernando Araújo "sentem a pressão da comunidade internacional e falham ao insistir no argumento da legítima defesa para isentar o país de culpa pelo ataque militar a território equatoriano em 1º de março." Analistas e colunistas da imprensa colombiana especulam que o cargo do chanceler está em perigo e apontam até mesmo nomes de possíveis sucessores.

Camila Moraes entrevistou o principal líder da oposição colombiana, o senador Gustavo Petro, pré-candidato às eleições presidenciais de 2010 pelo Polo Democrático, que disse que o governo de Álvaro Uribe "violou o direito internacional" e que "o que se está construindo na Colômbia é uma ditadura". O senador também disse que é preciso "recuperar a esquerda latino-americana" e que "uma aliança PT-Polo Democrático poderia re-impulsionar a esquerda no subcontinente".

Leia a seguir a entrevista na íntegra:

Terra Magazine - Qual é sua opinião sobre a atual crise diplomática entre Colômbia e Equador, considerando inclusive a posição que vem sustentando o governo colombiano?

Gustavo Petro - A primeira causa tem a ver com o governo da Colômbia, e a segunda com as Farc. O governo colombiano, sem dúvida alguma, violou o direito internacional. A pergunta aqui, portanto, é por que o fez. Uma resposta simples seria "porque as Farc estão aí", mas o fato é que sempre estiveram. Há décadas, independente de quem são os governos de um lado e de outro. Nessa medida, a desculpa da Colômbia não é suficiente. A realidade é que detrás da política colombiana existe uma repetição, como um espelho, da política dos Estados Unidos de empreender o que eles chamam de "guerra contra o terrorismo". O que supõe uma relativização das fronteiras e uma violação do mecanismo das Nações Unidas, através do qual os países deveriam resolver seus problemas de maneira pacífica e diplomática.Sobre as Farc, a pergunta, no contexto da crise, fica sendo: se as Farc conseguissem transformar em realidade sua política, isso diminuiria o conflito armado na Colômbia ou o aumentaria? O que eu posso dizer é que, da mesma maneira que os recursos dirigidos pelos EUA ao governo colombiano aumentaram o conflito ao invés de diminui-lo, os respaldos que provêm de outros governos para as Farc produziriam o mesmo efeito negativo. Em resumo, a Colômbia precisa mudar sua política internacional e cobrar mais autonomia dos demais países, visando à integração latino-americana e não sua polarização, conforme prioriza a Constituição do país.

O senhor acredita que a política de segurança do governo, centrada nas Farc e no narcotráfico, está contribuindo para a internacionalização do conflito? Existe um problema estratégico no Plano Colômbia?

Claro. O Plano Colômbia é uma ajuda estrangeira para a guerra, que fracassou por ignorar que a maior fortaleza do narcotráfico no país, além de seu dinheiro, é sua relação com o poder político e o Estado colombiano. No último ano, porém, houve uma mudança nesse cenário, com o apoio de uma maioria democrata, ainda que com timidez, para aumentar a ajuda à justiça e à luta contra a impunidade na Colômbia - caminho que eu acredito que é muito mais eficaz como política anti-drogas, ao contrário do financiamento bélico. Falando da droga especificamente, é um projeto que se moveu ao redor da força militar e da fumigação da folha de coca. E hoje o preço da cocaína disparou em Nova Iorque, comparado com o de 2002 - quando o Plano Colômbia estava em seu auge. O que temos é um incremento da oferta de cocaína nos Estados Unidos, logo essa é uma política que fracassou, então temos que construir outra.

Como o senhor vê a situação das fronteiras da Colômbia não só com Equador e Venezuela, mas também com o Brasil, sobre a qual se fala pouco?

O mesmo Plano Colômbia, construído como fumigação armada, vem empurrando os cultivos de folha de coca para as fronteiras. E esses vão rio abaixo, penetrando a selva amazônica. Eu acredito que nesse momento já penetraram territórios amazônicos venezuelanos, brasileiros e equatorianos onde, em realidade, já estavam antes, mas se incrementaram. É um enorme perigo para a selva e, além disso, produz uma desestabilização das fronteiras. Por isso é que a luta anti-narcóticos tem que mudar e tem que ser hoje, fundamentalmente, assunto de um eixo sul-americano. E em relação às Farc, o Exército colombiano, mesmo sendo o maior da América do Sul, não consegue controlar o deslocamento interno da guerrilha. Menos ainda se pode pedir que outros Exércitos, menos fortes e com outras prioridades, controlem seus movimentos para fora do país. As Farc sabem disso e o utilizam como saída de retaguarda.

O senhor é a favor da proposta de Lula de criar de um Conselho Sul-Americano de Defesa?

Completamente. É preciso começar a construir com os demais países sul-americanos instituições e processos comuns ao redor de interesses comuns, que são muitíssimos. Mais ainda neste tema que tem a ver com conflito armado, narcotráfico e o papel desestabilizador que produzem no subcontinente. Mas há outros aspectos que afetam a segurança da América do Sul: o narcotráfico é um, o aquecimento global, que pode produzir a queimada da selva amazônica e sua conversão em deserto rapidamente, é outro. Não há nenhuma política comum ao redor deste que é um tema de impacto direto sobre as sociedades sul-americanas e o mundo. Além disso, como asseguramos a biodiversidade da região? Como equilibramos a questão local de energia, com países que têm recursos tão escassos, enquanto outros têm abundância de recursos? Enfim, há vários temas que permitiriam uma discussão coletiva dentro de um Conselho Sul-Americano de Defesa. A Colômbia tem que entrar para a discussão dessa política internacional.

O Brasil teve ou está tendo um papel importante dentro da crise, em sua opinião?

Não, nenhum. Acho que a tese de manter uma distância prudente da Venezuela e da Colômbia levou o governo a não ter nenhum papel. É uma distância que vem de muito tempo atrás. A selva amazônica terminou servindo não de ponto de contato, mas de muro entre os dois países. O mundo andino não recebeu do Brasil a devida atenção, e pela fronteira é que estão entrando os problemas. Houve a proposta do Conselho de Segurança, que aqui nós ouvimos durante a crise. Por sinal, nós do Polo Democrático a havíamos feito também. É uma coincidência, da qual creio que o Brasil tampouco se inteirou até agora. Vejo isso como uma tentativa do Brasil de retomar uma iniciativa, mas a realidade é que a tinha perdido.

De que maneira o Brasil e especialmente o presidente Lula podem ser parceiros importantes da Colômbia?

Acredito que temos que recuperar a esquerda latino-americana. As Farc representam um papel negativo para essa esquerda e foram a "desculpa que faltava" para a atuação dos Estados Unidos, já que vontade de intervir não lhes falta. E o PT, digamos, que tem clara essa situação, e demonstrou isso no Fórum de São Paulo, deveria se juntar com o Polo Democrático em busca de recuperar o princípio democrático para a esquerda latino-americana, sem voltar a se apostar em processos totalitários, como os que representam as Farc, que por sinal são uma guerra altamente impopular na Colômbia, apesar de se definir como "exército do povo". Uma aliança PT-Polo Democrático poderia re-impulsionar a esquerda no subcontinente, além de impedir um fator de desestabilização e uma possível intervenção dos Estados Unidos.

Em algumas reportagens da imprensa colombiana, o senhor aparece como uma pessoa próxima ao presidente venezuelano Hugo Chávez. Que relação é essa e como o senhor vê a atuação dele, especialmente nessa crise?

Nesse momento, não tenho nenhuma (relação). A posição do Polo Democrático não foi tida em conta e nem houve nenhum tipo de contato entre os dois lados desde o momento em que ele assumiu a mediação, ou seja, desde o fim do ano passado até o momento. A esquerda colombiana não foi escutada, nem pela Venezuela, nem pelo Equador, em todo esse processo que vivemos. Fui amigo de Chávez, mas amizade não significa acompanhar. E se tivéssemos discutido sua postura como mediador até o momento, eu teria dito que se equivocou na avaliação que fez da Colômbia, de sua sociedade, das Farc... E, acredito eu simplesmente, já que isso não me cabe, que também se equivocou na avaliação que a sociedade venezuelana teria de uma intensificação de um conflito com a Colômbia.

E como o senhor vê a tentativa de os Estados Unidos incluirem a Colômbia na lista de países que apóiam o terrorismo?

Os Estados Unidos estão completamente equivocados na sua guerra contra o terrorismo. É assim de simples. Todo o resto são instrumentos de uma política global fracassada. Terão de refazer sua política internacional, da mesma maneira que a Colômbia, que é autista neste tema. Se não se produz uma mudança, acredito que vão se chocar contra toda a humanidade. O fato de considerarem a alguns apoiadores do terrorismo é uma política de moral dupla: só vale para os opositores de seus governos aliados, mas não para quem realmente o é. Por que é terrorista Osama Bin Laden e não é terrorista o ditador do Paquistão?

Como o senhor acha que seguirão as negociações com as Farc para a liberação dos reféns?

O que mostrava o computador (de Raúl Reyes) é que as Farc estavam caminhando para a liberação de reféns em troca do status de força beligerante. Eu acredito que, ao revelarem sua estratégia, estão debilitados. É muito difícil, hoje, que países como Venezuela e Nicarágua, que estavam a ponto de dar esse status, agora o façam. É possível que consigam um acordo para sair da lista de organizações terroristas da Europa, o que geraria a liberação de alguns seqüestrados, entre eles Ingrid (Betancourt). Porém, as Farc vêm de um mundo rural de 60 anos de guerra, profundamente ignorante em relação ao panorama internacional, ainda que recentemente o venham captando, e são profundamente sectárias. Hoje, são uma combinação desse sectarismo com o narcotráfico, o que pode levá-los neste momento a não abrandar posições e manter os seqüestrados. O que estava em caminho, eu vejo danificado. Na minha opinião, em relação ao conflito, são três caminhos os que se deve tomar: ofensiva militar, reformas democráticas, fundamentalmente da distribuição da terra, e a negociação de uma saída política. Combinando as três, temos uma política de paz, e eu diria que bem-sucedida. O governo Uribe só fala da primeira, por isso vai fracassar.

Com os temas do acordo humanitário e da crise diplomática, pouco tem se falado sobre "parapolítica" neste momento. Como o senhor vê atualmente o problema dos paramilitares na Colômbia?

Não falar é um dos efeitos dessa crise. Chávez ajudou a derrotar as principais bandeiras que a esquerda colombiana levantou. A derrota do TLC (Tratado de Livre Comércio) entre Colômbia e Estados Unidos era um dos grandes avanços da esquerda colombiana, que considera essa uma política errada para o país. Eu mesmo afirmei que o TLC ajudaria a reprodução do narcotráfico na Colômbia, na medida em que sustentava a propriedade concentrada de terras. Hoje, a probabilidade de que se aprove o tratado aumentou, graças a uma desacertada situação internacional. E o outro tema em que havíamos avançado enormemente e que havia provocado uma queda do favoritismo do Uribe é o tema do paramilitarismo e sua relação com o Estado. Tema que nós mesmos denunciamos e com o qual conseguimos mandar para a prisão dezenas de altos dirigentes aliados ao governo e cúmplices do paramilitarismo. Esse assunto, que deveria ser estudado com tanto cuidado pela sociedade colombiana, passou ao segundo plano por causa da crise. E trouxe como conseqüência um fortalecimento de Uribe. Enquanto isso, o país está mais que paramilitarizado.

Uribe ainda não declarou formalmente seu interesse em uma segunda reeleição, mas esse processo parece estar em andamento. Qual é sua opinião a respeito?

A reeleição é um problema de discussão interna de cada país. Nos países onde se permite, sempre existe um sistema de equilíbrios em meios de comunicação e em outros poderes públicos, que permite manter um equilíbrio democrático, apesar da reeleição. O problema na Colômbia é que isso não existe; não está dentro do projeto de reeleição um fortalecimento de outras instituições democráticas. A única coisa que escaparia ao poder do presidente é a Corte Suprema, que é precisamente a que está capturando seus aliados políticos mais importantes, por terem vínculos com o narcotráfico e o paramilitarismo. Por esse panorama, eu diria que o que se está construindo na Colômbia é uma ditadura.

Neste sentido, há algo que aproxima Uribe e Chávez.

Existem mais equilíbrios na Venezuela do que na Colômbia. A maior parte dos meios de comunicação que vêem ou escutam os venezuelanos é de oposição, e eles estão aí. Na Colômbia, você não verá nem escutará meios de comunicação que sejam oposição.

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