quinta-feira, 19 de abril de 2007

Artigo

Big Brother Brasil: Imagens puras da exceção

No reality show, o papel dos espectadores é o de empobrecer o conteúdo de suas próprias experiências

Por Silvio Mieli (jornalista e professor do Departamento de Jornalismo da PUC de São Paulo) no Brasil de Fato:

"No final de março, durante uma palestra sobre democracia e movimentos populares, Francisco Whitaker, do Comitê Organizador do Fórum Social Mundial e vencedor do Prêmio Nobel Alternativo de 2006, se insurgiu contra o Big Brother Brasil, sétima versão do programa levado ao ar pela Rede Globo. Suas críticas se voltaram contra o apresentador, o jornalista Pedro Bial, que, num dos episódios, saudou os participantes do programa dizendo: “E agora vamos falar com os nossos heróis!”. Whitaker ficou indignado e sugeriu o lançamento de uma oportuna campanha de boicote à emissora e ao programa. “Afinal de contas, quem são os nossos heróis?”, bradou, fazendo coro com uma apresentação em “Power Point”, distribuída em muitas listas de e-mails pela internet, que confrontava os lascivos participantes do programa com voluntários da organização Médicos Sem Fronteiras, que atuam no front do movimento social.

Quando Michel Foucault (sociólogo francês) concluiu sua obra “Vigiar e Punir” (1975), onde descreve o poder imobilizante do registro, do exame e da escrita pan-óptica, que se manifesta em várias formas de vigilância, não existia essa modalidade de reality show (show de realidade). Mas Foucault já demonstrou que a transcrição por escrito (ou hoje, via vídeo) das existências reais (ou ficcionais) não é mais um processo de “heroificação” (a crônica de um homem, o relato de sua vida, sua historiografia no desenrolar da existência), mas funciona como um mecanismo de objetivação e sujeição. O ser humano virou uma “cifra”, uma “nota de rodapé”, um “caso”, um “arquivo”. Até o século 18, a individualidade não era rastreada através de uma mirada ininterrupta, de um corte detalhado seguido de um acompanhamento minucioso. Isso era para poucos poderosos. Não havia essa forma obsessiva de iluminação, que se utiliza de câmeras minúsculas à espreita do mais sutil movimento. “Os procedimentos disciplinares reviraram essa relação, abaixando o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação. Não mais monumento para uma memória futura, mas documento para uma utilização eventual”, explica Foucault na página 159 de “Vigiar e Punir” (Petrópolis, Ed.Vozes, 1998).

Portanto, se já abandonamos a dimensão da “heroificação” para cair de boca na “coisificação”, talvez não se trate de confrontar essas produções televisivas no campo do heroísmo. O momento exige a compreensão do seu caráter despotencializador, paralisante, integrado a uma outra dimensão social e política. Este aspecto é que será necessário aprofundar.

Ficção barata

Nietzsche (filósofo alemão do século 19) já profetizou que, no fim, o mundo verdadeiro transforma-se em fábula. Os "shows de realidade" são fábulas. Só que de quinta categoria. É ficção barata mesmo. Entretanto, há em toda ficção barata um imenso poder despotencializador. Os “reality shows" atraem e paralisam os espectadores, despotencializando-os. Nesse sentido, representam o apogeu da sociedade do espetáculo. São um misto de neo-darwinismo (sobreviverá o mais “forte”), sociedade do espetáculo (celebrização), sociedade do controle (via marketing), redução da complexidade e da biodiversidade do imaginário audiovisual e produção de monoculturas mentais (condição humana reduzida ao seu mínimo denominador comum). A idéia é a seguinte: devem sobreviver nesses programas as figuras mais bem adaptadas à sociedade espetacular. Quem passar pelos crivos da audiência (manipulada e manipulável), do mercado (regido por éticas e estéticas perversas) e novamente do público (pervertido, no sentido de desmoralizado), deve sobreviver tanto no show, quanto na vida, dimensões que se fundem numa só e única realidade. O “zumbi” que sobreviver pode ser utilizado de várias maneiras (a “utilização eventual” da qual nos falava Foucault): virar modelo, atriz/ator de novela, garota(o)-propaganda e assim girar a máquina enlouquecida do espetáculo.

O documentarista francês Jean-Louis Comolli, quando passou por São Paulo em 2001, enfatizou o caráter transformador de qualquer experiência audiovisual. No caso do cinema, exemplificou, “supõe-se que o espectador percorra todo o filme para sair modificado no final, é o sujeito da experiência. Num reality show, o sujeito da experiência são as pessoas que estão sendo filmadas. É uma inversão a partir de um artifício construído com os mesmos tópicos do cinema”. Não há interação com o público, muito menos intervenção. O roteiro do show já está previamente definido. O papel dos espectadores é o de empobrecer o conteúdo das suas próprias existências, alugando uma pseudo-realidade oferecida pelo programa. Além, é claro, de incentivar a compra dos subprodutos desse show de horrores. Comolli dizia na época da entrevista (concedida ao caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo, em 19 de novembro de 2001) que “essa tendência corresponde ao movimento global de desresponsabilizar os cidadãos e colocá-los em jogo uns contra os outros. Abdica-se de uma responsabilidade real por uma responsabilidade entre aspas. Isso lembra as condições de surgimento do fascismo”, alertou Comolli.

Diante de programas dessa natureza, o primeiro ímpeto seria aquele de dizer que “o estado de exceção” chegou aos produtos da indústria cultural. Mas sabe-se que desde a formação do capital inicial da indústria cultural, o terreno já estava preparado para a produção de um imaginário “excepcional”, um modelo de produção e circulação de signos que inclui o outro através da sua exclusão como ser humano (capitalização do espírito e da alma). Só que, agora, estamos diante das imagens puras da exceção. E utilizando a riquíssima análise que o filósofo italiano Giorgio Agamben nos oferece (a partir dos debates entre Walter Benjamin e Carl Schmitt), percebe-se que a exceção virou regra geral. O assalto sobre o que restou de dignidade humana já entrou nos cálculos do poder daqueles que controlam o aparato produtor de imagens.

Agambem comparou a situação dos judeus no nazismo – juntamente com a cidadania, haviam perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de judeus – com a nova figura dos detidos na base de Guantánamo. Os "detainees" se acham submetidos a uma pura dominação de fato, a uma detenção que não é apenas indefinida num sentido temporal, mas também por sua própria natureza, pois ela escapa completamente à lei e a toda forma de controle judiciário. Aqui, dirá Agamgen, toda ficção de um vínculo entre violência e direito desaparece. Não há mais que uma zona sem lei ou regra em que prevalece uma pura violência sem nenhuma cobertura jurídica. Ora, quando o estado de exceção se torna a regra, então o sistema político se transforma num aparelho de morte.

Potencial deletério

A última fornada de imagens de violência estetizada, que nos chega em profusão vinda de várias fontes, não deixa de reproduzir uma estrutura original pela qual as novas “leis” do mercado audiovisual incluem em si o vivo por meio de sua própria suspensão. Ou seja, o “estado de exceção” ganhou a sua estética própria. E apesar de não estarmos mais na era dos heróis, há, sem dúvida, um elemento místico, um aparato ficcional, que elevando a barbárie gratuita à sua carga máxima, tenta ficcionalizar aspectos do ser humano através da superexposição do desumano. Senão vejamos: o seriado “24 horas”, apresentado nos Estados Unidos pela Fox e distribuído pelo mundo afora, apelou para a tortura explícita. Abu Graib e Guantánamo não foram suficientes. É preciso esticar o fio e mostrar que é necessário torturar na luta contra o terrorismo. Já o filme “300”, que conta com ator brasileiro, faz a apologia da guerra pura, da “guerra sem fim” entre a lógica oriental e ocidental. Por acaso a primeira fica exatamente onde hoje é o Iraque. Pulemos da Pérsia para a internet. O programa “second life” (segunda vida), a eterna aposta do capitalismo cassino no mundo virtual, decreta o fim da nossa primeira vida, que esbarra numa materialidade incômoda e indesejável e nos convida a zerar a primeira, que pelo jeito não deu muito certo, e tentar uma segunda (vida). E, finalmente, o Big Brother Brasil e congêneres, por onde começamos estes comentários. Aparentemente é o mais inofensivo, mas talvez seja aquele que carregue o maior potencial deletério, principalmente no nosso universo local. Trata o imaginário dos telespectadores como se fossem os “detidos” de um sistema prisional “a la Guantánamo”.

Como afirmou Giorgio Agamben, “até que, todavia, uma política integralmente nova não se apresente, toda a teoria e toda praxe permenecerão aprisionadas em um beco sem saída, e o 'belo dia' da vida só obterá cidadania política através do sangue e da morte ou na perfeita insensatez a que a condena a sociedade do espetáculo”. (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer; o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004, p.19)."

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