Na última quarta-feira 12, acompanhos o desfecho do primeiro ato do espetáculo envolvendo o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente daquela Casa Legislativa e do Congresso Nacional. Renan foi absolvido pelos colegas senadores da acusação de ter utilizado recursos da construtora Mendes Júnior para pagar despesas com o aluguel e pensão alimentícia à jornalista Mônica Veloso, com quem tem uma filha. O placar foi de 40 a 35 a favor da absolvição - houve seis abstenções. Para aprovar a cassação, eram necessários 41 votos.
Nunca os versos da canção foram tão atuais: "Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado / Ninguém respeita a Constituição / Mas todos acreditam no futuro da nação". O que ocorreu quarta-feira no Senado demonstrou que Renato Russo, além do talento para traduzir em versos musicados a rebeldia e os sonhos da geração jovem da década de 1990, era um profeta social. Ele anteviu o lamaçal que tomaria conta daquele lugar de vetustos guardiões da República do Brasil. Imagino que se estivesse vivo para assistir a tão deprimente exibição de desfaçatez, Renato Russo, entre perplexo e atônito, novamente perguntaria: "Que país é este?".
Em seu discurso de defesa de Renan Calheiros, o senador Francisco Dornelles (PMDB-RJ), ex-secretário da Receita Federal e ex-ministro da Fazenda, disse que o seu colega teria, no máximo, cometido "crime contra a ordem tributária" e que isto não seria motivo suficiente para cassar-lhe o mandato. Este crime estaria configurado se ficasse provado que Renan "não tinha renda nem patrimônio suficientes para fornecer à Jornalista Mônica Velloso os recursos que lhe eram entregues", defendeu Dornelles. Para o ex-ministro de FHC, nem isto ficou provado. O cinismo transformara o transgressor da ética e do decoro em vítima.
Paulo Henrique Amorim disse em seu "Conversa Afiada" que "A absolvição de Renan Calheiros é a maior derrota da imprensa brasileira depois da reeleição do Presidente Lula". Para ele, a "perseguição" contra Rennan Calheiros tem intenções "golpistas", pois trata-se de um senador da base de apoio do presidente Lula e um nordestino. Anacronismo extremo. PHA parece aceitar o argumento recorrente de que devemos consentir com a transgressão pelo simples fato de que esta é uma prática amplamente disseminada. "Renan Calheiros cometeu todos os crimes que 99,9% dos políticos brasileiros cometem". PHA prega a banalização da ética e a tolerância com o crime.
Esta tolerância é um das nossas maiores chagas. Ela nos imobiliza e nos converte em cordiais espectadores da imoralidade da política brasileira - palco de alianças e práticas espúrias. Aceitamos irrefletidamente a máxima popular que apregoa que os fins justificam os meios. Frei Betto diz que aceitar isto é o mesmo que negar a ética. No artigo "Desafios Éticos", que escreveu para a revista "Caros Amigos" de novembro de 2003, ele afirma que a luta pelo poder na política burguesa faz com que o fim justifique os meios. O escritor refuta esta tese argumentando que "o grande desafio da política libertadora é basear-se numa ética libertadora".
O princípio da ética libertadora é que deve servir de base para avaliarmos "as implicações éticas das práticas políticas, sobretudo considerando que a política é o terreno das negociações, das alianças, dos acordos", acrescenta ele. Então, é o caso de fazermos outra pergunta: nossos homens públicos agem movidos por princípios ou por interesses? "O opressor age movido por interesses; o libertador, por princípios", sentencia Frei Betto.
Em "O império do Grotesco", os professores Muniz Sodré e Raquel Paiva narram outro episódio envolvendo senadores em apuros:
"Em abril de 2000, no auge da crise no Senado pela violação do painel eletrônico de votação [os então senadores José Roberto Arruda e Antônio Carlos Magalhães violaram o painel do Senado na votação que cassou o mandato do senador Luiz Estevam e renunciaram para não serem também cassados], o artista plástico Siron Franco levou para o Congresso uma escultura de dois metros e meio coberta de fezes, feitas de serragem. Batizada de "O que vi na TV", a obra ficou exposta por algumas horas aos olhares de parlamentares e estudantes. Uma menina de 13 anos interpretou o trabalho: "Representa o que tem lá dentro", disse, apontando para o Congresso. Enquanto isso, o jornal inglês Financial Times dizia que "se política, como prega o ditado, é um show business para gente feia, o Congresso brasileiro está promovendo uma performance que mistura teatro, novela e circo".
Este caso da violação do painel eletrônico e as recentes estripulias de Renan Calheiros e seus valiosos bois voadores mostram que a forma de fazer política da maioria dos políticos brasileiros é exatamente conforme a descrição da metáfora de Siron Franco - um excremento. Renan permanecerá por aí como ferida exposta, como cadáver em estado de putrefação moral. Espero apenas que um dia eu possa ecoar os versos de Mário Quintana: "Eles passarão, eu passarinho".
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