domingo, 1 de março de 2009

A "ditabranda" da Folha

O post é longo, mas vale à pena ser lido com paciência.

Na semana passada, um editorial da Folha de São Paulo, classificando a ditadura brasileira (1964-1985) como "ditabranda", causou (e continua causando) polêmica entre leitores, jornalistas, acadêmicos, filósofos, estudantes e todo o mundo da blogosfera.

Na edição de terça-feira (17), a pretexto de criticar a vitória de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, no referendo popular sobre a reeleição ilimitada (Chávez poderá concorrer quantas vezes quiser à presidência do seu país), o jornal saiu-se com essa:

"Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso."


Multiplicaram-se os protestos contra a inexplicável denominação da Folha para o regime que, durante 21 anos, prendeu, torturou, estuprou e assassinou todos aqueles que, conforme a vontade dos generais de plantão, eram considerados subversivos.

Dois dias depois do fatídico editorial, o jornal publicou a carta do leitor Sérgio Pinheiro Lopes, na qual chama o neologismo da Folha de "detestável e inverídico":

"Golpe de Estado dado por militares derrubando um governo eleito democraticamente, cassação de representantes eleitos pelo povo, fechamento do Congresso, cancelamento de eleições, cassação e exílio de professores universitários, suspensão do instituto do habeas corpus, tortura e morte de dezenas, quiçá de centenas, de opositores que não se opunham ao regime pelas armas (Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filho, por exemplo) e tantos outros muitos desmandos e violações do Estado de Direito.

Li no editorial da Folha de hoje que isso consta entre "as chamadas ditabrandas -caso do Brasil entre 1964 e 1985" (sic). Termo este que jamais havia visto ser usado.

A partir de que ponto uma "ditabranda", um neologismo detestável e inverídico, vira o que de fato é? Quantos mortos, quantos desaparecidos e quantos expatriados são necessários para uma "ditabranda" ser chamada de ditadura? O que acontece com este jornal?

É a "novilíngua"?

Lamentável, mas profundamente lamentável mesmo, especialmente para quem viveu e enterrou seus mortos naqueles anos de chumbo.

É um tapa na cara da história da nação e uma vergonha para este diário."

Em resposta, a Folha publicou uma Nota da Redação, onde defende que "na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional".

Em seguida, vieram as cartas do professor Fábio Konder Comparato e da socióloga Maria Victória Benevides:

O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17/2, bem como o diretor que o aprovou, deveria ser condenado a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana.” (Fábio Comparato)

Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ‘ditabranda’? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi ‘doce’ se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala – que horror!” (Maria Victória)

A Folha, mais uma vez, respondeu com uma Nota da Redação:

A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente ‘cínica e mentirosa’.”

Em artigo na revista Carta Capital, a socióloga Maria Victória Benevides explicou o porquê da "inacreditável estupidez da Folha":

"1. A combativa atuação do advogado Comparato para impedir que os torturadores permaneçam “anistiados” (atenção: o caso será julgado em breve no STF!). 2. O insidioso revisionismo histórico, com certos acadêmicos, políticos e jornalistas, a quem não interessa a campanha pelo “Direito à Memória e à Verdade”. 3. A possível derrota eleitoral do esquema PSDB-DEM, em 2010. (Um quarto ponto fica para “divã de analista”: os termos da nota – não assinada – revelam raiva e rancor, extrapolando a mais elementar ética jornalística.)"

Mas não parou por aí. Em seu blog, o jornalista Mello disse que a Folha, ao transformar ditadura em "ditabranda", pretendia se "autoindultar". Explica-se: pesa contra o jornal a suspeita de ter colaborado com o regime, conforme declarou Mino Carta:

"A Folha de S. Paulo nunca foi censurada. Até emprestou a sua C-14 [carro tipo perua, usado na distribuição do jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operação Bandeirante]."

Ainda segundo Mello, o caso demonstra a tentativa de "sequestro da realidade que a mídia corporativa impõe ao país, na tentativa de vender uma realidade alternativa aos brasileiros."

Até mesmo o editor de Brasil da Folha, Fernando de Barros e Silva, se manifestou publicamente contra a tentativa do jornal de mascarar esse capítulo da recente história do nosso país. Na quarta-feira (25), o jornalista escreveu:

"O mundo mudou um bocado, mas "ditabranda" é demais.O argumento de que, comparada a outras instaladas na América Latina, a ditadura brasileira apresentou "níveis baixos de violência política e institucional" parece servir, hoje, para atenuar a percepção dos danos daquele regime de exceção, e não para compreendê-lo melhor.

O que pretende ser um avanço analítico parece, mais do que um erro, um sintoma de regressão.

Algumas matam mais, outras menos, mas toda ditadura é igualmente repugnante. Devemos agora contar cadáveres para medir níveis de afabilidade ou criar algum ranking entre regimes bárbaros?

Por essa lógica, chega-se à conclusão absurda de que o holocausto nazista não passou de um "genolight" perto do extermínio de 20 milhões promovido por Stálin.

Ora, se é verdade que o aparelho repressivo brasileiro produziu menos vítimas do que o chileno ou o argentino, isso se deu porque a esquerda armada daqui era menos organizada e foi mais facilmente dizimada, não porque nossos militares tenham sido "brandos".

Quando a tortura se transforma em política de Estado, como de fato ocorreu após o AI-5, o que se tem é a "ditadura escancarada", para falar como Elio Gaspari. Seria um equívoco de mau gosto associar qualquer tipo de "brandura" até mesmo ao que Gaspari chamou de "ditadura envergonhada", quando o regime, entre 64 e 68, ainda convivia com clarões de liberdade, circunscritos à cultura."

Para quem ainda tinha alguma dúvida, a Folha demonstrou que é um jornal conservador e reacionário, apesar de sempre se travestir de democrático e plural.

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