Manhã de quinta-feira, 28 de junho. Estou no ponto de ônibus esperando o transporte que me levaria ao trabalho. Os carros cortam a paisagem. Rapazes oferecem água de coco "geladinha" aos motoristas que param no semáforo. Mais à frente, homens trabalhando na pista. Tudo normal em Natal.
Mas uma cena chama a minha atenção. Enquanto espero à sombra, uma mulher passa bem na minha frente. Aparentava uns 50 anos. Rosto cansado, suor pingando, cabelos desarrumados, vestia um vestido velho e estampado. A mulher era magra, muito magra. Expressava na face, nos olhos ligeiros, o sofrimento de uma vida severina. Reforçava minhas impressões a sacola de supermercado que ela carregava nas mãos - vazia.
Imaginei que talvez aquele fosse mais um dia amanhecido sem nada para saciar a sua fome. Neste exato momento, num lampejo de tempo, fui transportado dali, daquele ponto de ônibus. Meus pensamentos me remeteram a outros lugares que não conheço. O rosto daquela mulher trouxe à memória outros tantos rostos que eu já vi passar. E em todos eles, o mesmo retrato, as mesmas marcas, as mesmas dores - a marca da exclusão, a dor da mesma vida severina.
De repente, fui tomado por um sentimento dilacerante. Senti em mim todas as injustiças do mundo. Era uma dor visceral. Num segundo, pensei que não iria suportar. Impossível racionalizar o que vivi.
Lembrei-me de uma cena do filme "Diários de Motocicleta", quando Ernesto "Che" Guevara despede-se do amigo Alberto Granado, seu companheiro na travessia pela América Latina. A viagem por diversos países, a bordo de La Poderosa, fez com que os amigos descobrissem a realidade dos que vivem no continente. No leprosário de San Pablo, em plena Amazônia peruana, o momento mais fascinante do filme. Al otro lado del rio, os doentes estão isolados dos sãos. Ernesto atravessa o rio a nado e junta-se aos excluídos. É quando ele mostra que escolheu o lado dos oprimidos.
Quando Granado está para partir de volta à Argentina, deixando Ernesto na Venezuela, este último despede-se do amigo com a frase síntese do sentimento que moveria suas escolhas a partir dali: "Quanta injustiça!". A experiência forjaria, mais tarde, o caráter revolucionário e transformador do Che.
A cena, na minha mente, corta para os dias atuais. O que mudou? As injustiças ainda se sucedem. Mas, agora, em escala planetária e na velocidade do espetáculo televisivo. Vejo a injustiça aparecer nos países invadidos pelas tropas americanas que, em nome da paz, promovem verdadeiros genocídeos. Apesar de ignorada, ela (a injustiça) é a responsável também pelos assassinatos dos que lutam por reforma agrária no Brasil. São as suas marcas (da injustiça) que enxergo em cada chacina contra moradores de rua, presidiários e outras classes de indivíduos socialmente invisíveis. É ela (a injustiça) que faz das favelas um território do tráfico de drogas, onde cidadãos de bem e crianças convivem diariamente com a violência urbana. E lá está ela (a injustiça) novamente por trás da cara sofrida de cada brasileiro que não tem o que comer, que adoece e morre por falta de hospitais, que não tem o direito ao saber.
Quando assisto à cenas como a da empregada doméstica espancada pelos playboys do Rio de Janeiro, que tiveram o displante de se justificar dizendo que bateram nela por pensar que se tratava de uma prostituta, fico completamente desorientado. A injustiça produz em mim uma desorientação crônica: não sei o que fazer, não sei nem se há o que fazer. O pai de um dos agressores da moça disse que o filho não deveria ser preso porque ele é apenas "um menino que tem a vida toda pela frente e não pode perder o seu futuro por um erro apenas". Se os espancadores fossem os neguinhos da favela e a vítima fosse a filha de um desses senhores, esses mesmos pais zelosos do futuro de seus filhos estariam clamando por justiça (!) em todos os telejornais. "Tem que reduzir a maioridade penal pra evitar que esses criminosos fiquem soltos", diriam eles.
A injustiça está na raiz de todas as cenas e males anteriormente descritos. Ela (a injustiça) precipita o abismo que nos separa. Abismo que se alimenta da farsa política dos nossos homens públicos; que se mantém graças às excrecências de um modelo econômico e político catalisador da exlusão - o capitalismo (pai de todas as injustiças).
Com diriam os pós modernos, a vida é um turbilhão de emoções e sensações diferentes. Eu queria que a vida fosse como na telenovela, onde tudo sempre acaba num happy end. Mas essa vida é uma mentira. O que existe, de verdade, é a vida severina de cada um que sofre na pele a dor da injustiça.
2 comentários:
Parabéns Alisson esse texto esta ótimo,contando várias das verdades existentes hoje,tanto em nosso país quanto no mundo.Esses fatos estão acontecendo nos dias atuais com tamanhas proporções e sendo tratados muitas vezes como algo normal,pois hoje a bastante injustiça,e o que Fazemos?
Mais uma vez Parabéns Alisson!!
Este texto, assim como todos os outros que vc escreve, possui um dos fatores mais raros na escrita, a emoção. Trazer a tona temas difíceis, mas necessários para a denuncia e possibilidade de modificação do meio social que nos cerca é, sem dúvida, umas das suas caracteristicas marcantes!!
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